segunda-feira, 22 de maio de 2017

Apoiando-se no espaço vazio (Marina Colasanti)


Este miniconto incrível nos surpreende assim como  nos surpreendemos constantemente no mundo real com as pessoas que nos rodeiam  ou com nós mesmos. Leva-nos a refletir também sobre as nossas preferências para sermos felizes: aceitar o outro como é ou mentir a si mesmo?





Boa leitura.



Durante mais de 20 anos partilhou a cama com sua esposa chinesa. E embora Ching-Ping-Mei não lhe tivesse dado filhos, sabia o quanto ela os desejara.Várias vezes, ao longo daquele tempo,dissera-lhe estado grávida,perdendo a criança em lamentáveis acidentes. E ele piedosamente fingira acreditar, para não ferir sua delicada sensibilidade oriental.

Gentilmente, amavam-se. Recato,escuridão,jogos de leques. Assim se procuravam desde sempre na penumbra do quadro. Corpos nunca revelados, névoa de incenso, o amor envolto em véus e cortinados, conservando o mistério dos primeiros dias.

Porém, adoecendo Ching-Ping-Mei, exigiu o médico que abrissem as janelas e se fizessem luz, tornando possível o exame. E embora ele se mantivesse do lado de fora da porta, em discreta espera, não lhe foi permitido escapar à revelação trazida junto com o diagnóstico.

A paciente logo sararia, comunicou-lhe o médico, porém ele considerava seu dever comunicar-lhe que a luz da medicina, e não obstante a graça e a doçura inegáveis sua esposa Ching-Ping-Mei era, na verdade, um homem.

Atordoado, cambaleou sentindo esboroar-se o cerne do amor, estendeu as mãos à frente. Mas em que apoiar-se, se ele próprio, apesar da barba e dos bigodes, e sem que amada jamais desconfiasse, era, e tinha sido ao longo daqueles anos todos, mulher?




Veja aqui um magnífico trabalho de estudo mais aprofundado sobre esta obra.


Sobre a autora

Marina Colasanti ( 26 de setembro de 1937) é uma escritora e jornalista ítalo-brasileira nascida na então colônia italiana da Eritreia. Viveu sua infância na Líbia e então voltou à Itália onde viveu onze anos. Emigram para o Brasil em 1948, em razão da difícil situação vivida na Europa após a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil estudou Belas-Artes e trabalhou como jornalista, tendo ainda traduzido importantes textos da Literatura italiana. Como escritora, publicou 50 livros, entre contos, poesia, prosa, literatura infantil e infanto-juvenil. Seu primeiro livro foi lançado em 1968 e se chama Eu sozinha.
Seu livro de contos "Uma ideia toda azul" recebeu o prêmio O Melhor para o Jovem, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. É casada com o também escritor Affonso Romano de Sant'Anna, e irmã do ator Arduíno Colassanti.
Em 2010, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro Passageira em trânsito.

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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